Poema Último




A sociedade afirma: acabaste comigo.
Tu acabaste comigo. 
E só precisaste de um minuto. 
É assim em português coloquial.

Como se a ausência do teu amor
significasse o eclipse da minha identidade.

Em eco a mesma pergunta:
- Quem acabou com quem?

Parece até que a transmutação do amor
em indiferença não passa de uma titanomaquia.

Baixo a cabeça envergonhada e assumo a minha morte.
- Foi ele que acabou comigo.
Obedeço ao final e abraço-o como penitência.
Agarro a culpa no terror de nada mais poder agarrar.

Quem escolhe o fim do outro não lhe sobrevive apenas.
Adquire a omnipotência de apontar o dedo.
De eternamente decidir os limites do amor.

Um dos dois está condenado à extinção. 
A ameaça pende do primeiro beijo.
A nossa substância torna-se escrava dos afectos alheios.
Como se falássemos uma língua estrangeira a vida inteira,
E apenas nos pudéssemos compreender durante os breves momentos
em que abraçamos um tradutor. 
É assim em português coloquial.

Assim me enterraram ainda em vida.
Esbracejei muito. Degluti pouco.
Talvez tenha perdido alguns vocábulos que não regressam mais.
Contudo neguei a minha negação.
Resisti à sedução inexplicável da língua materna.
Confiei no carisma messiânico do eu.

Mas a pergunta resiste:
- Quem acabou com quem afinal?

Ninguém.
Apenas perdemos a fé. 
Sem degolar cordeiros ou visitar a terra prometida.

O imprevisível será sempre um bicho-papão.
Mas não devemos confundir o verbo amar com o verbo ser.
Celebremos sim as nossas cicatrizes,
locais de aconchego com os outros,
 e de diálogo com a plenitude. 




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