A melodia em que se esconde um fim de tarde...talvez Agosto?

Sentia as pegadas da camisa de dormir. Caíam sobre o seu corpo como gotas melancólicas exalando o aroma de verões esquecidos. E então o transe recomeçava. As folhas da figueira iam cedendo ao calor e dilatavam a sua imaginação (ou deverei dizer memória?) e da sensação de vergonhoso desconforto, causada pela visão da velha fábrica de sumos, renascia o cenário purpúreo de um céu que anunciava tempestade. A música que ecoava ao longe torturava-a e afastava o sono. É apenas a ansiedade causada pela viagem - dizia para si mesma repetindo as palavras da mãe. Mas a tranquilidade tardava em abraçá-la. Os ostinatos ocultos desses ritmos sazonais eram como ondas de fascínio e terror a que se entregava, e quando a canção certa tocava na rádio todo o seu corpo tremia em homenagem. Quanto mais se debruçava para agarrar essas recordações, maior era o estilhaço de corpos e símbolos, e o sentimento associado às imagens perdia-se nas comichões impacientes que o calor do quarto lhe provocava.

A vaga luz indicava o entardecer. O peso eléctrico dos céus significaria Agosto. A gaiola de vaidades em que a haviam encarcerado tornara-se uma máscara impossível de eliminar. O vento erguia as enormes gramíneas à sua passagem, massajando-as e revelando a sua dança secreta. E a frescura que ganhava vida junto à sua pele sussurava-lhe uma intrigante questão: – Será que te prenderam ou que te manténs refém pela segurança? Pelo reconforto que te proporciona a ilusão de seres tu a criminosa?

E então o espanto. A dificuldade em respirar. O sentir-se dominada, encurralada, descoberta. Quando o vento se soltou em toda a sua fúria, a penetrante melodia encolheu-se e tudo ficou em suspenso. Existiam mais corpos naquele cenário. Vultos negros cujas personalidades se iam fundindo em cada acto de lembrança. Era a sua camisa de dormir que observava ao longe abanando ao ritmo do vento? Era o corpo de um espantalho que ela cobria? E no momento em que fixava o olhar no horizonte sentiu um braço a afagá-la: - É hora de acordar. Depois podes dormir no carro.

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