Cena do quotidiano

Sentia o dia a chegar ao fim. Nas minhas costas passeava a ondulação despreocupada de uma brisa lenta e quente. O jardim em que nos encontrávamos espelhava os tons avermelhados do céu, que me inflamavam com a ansiedade boa da antecipação. Ao meu lado a Clara falava ininterruptamente das suas desilusões e ansiedades que lhe tornavam o corpo pesado e magro, apenas quebrando este fluxo nas escassas vezes em que tentara atrair um gato vadio que por lá cirandava. Deixei-me ficar ali sentada a ouvir sem refutar. O meu estômago contorcia-se de fome, todavia preferia este bicho-papão ao que vivia no meu quarto e que ocasionalmente remexia as minhas coisas na esperança de se encontrar.

Finalmente o gato começou a olhar-nos e a mostrar sinais de que ia tomar a nossa direcção. A torrente aflitiva de palavras foi cortada e os olhos de Clara perderam a monotonia abraçando a possibilidade de um encontro. Não pude deixar de reparar na forma como ela mimava o gato, e subitamente veio-me à ideia aquela experiência que um certo psicólogo realizou com macacos...aquela das mães de ferro e de pano...não recordo o nome... 
Pensei que pior que uma mãe de ferro seria uma de pano que nos baralhasse com ambiguidade e constante contradição. A Clara vivia notoriamente um conflito de aproximação-afastamento, ora falando afectuosamente e entregando a sua mão de forma despreocupada, ora hesitando enquanto desviava o corpo para ganhar distância de segurança. O dilema de querer amar e oferecer e em simultâneo recear o arranhão profundo que nos apodrece as entranhas e faz da vontade um cadáver. Aquele não era um momento de entrega pura, era sim a repetição de todas essas relações a que Clara julgava ter correspondido, mas das quais tinha saído mesmo antes de ter entrado.

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