Traições

Com a boca aberta aspiro passivamente as cinzas do seu corpo defunto.

Entrego-me sem forças a esta violação do meu carácter.

E enquanto mártir entoo os sopros da fúria, como os versos de uma canção.





Fausta enterra uma batata bem fundo no seu corpo. Ao tentar proteger-se do medo, acaba por o encerrar dentro de si, por nutri-lo, fazendo-o crescer e enraizar. Apodrece o seu próprio corpo, enterrando-se viva, com a expectativa de travar uma luta que não é a sua.

Transporta consigo uma herança pesada; o nojo que sente em relação à vida, aos homens e ao seu próprio passado. Esquece-se que por detrás dessas histórias, que elevam os seus heróis a mártires vivos, existe mais do que a voz conta e a memória venera.


O medo vivo da violação, de ser invadida pela vil crueldade dos outros, não deve cingir-se apenas ao acto físico, à penetração rasgada do ódio. A violação ocorre diariamente nas relações com os outros, sempre que deixamos que as suas histórias e ideias nos penetrem, conquistem, dominem e se enraizem. Não são essas histórias da barbárie, contadas pelos entes que nos deveriam proteger, violações também?

Ironicamente, Fausta, que no seu quotidiano se encontra convertida em vulto, enublada pela tragédia e pelo medo, tem no seu corpo uma fonte de vida inesgotável:  a batata que cresce e se desenvolve num solo virgem e fértil, e que o inunda de outros seres minúsculos que borbulham e pulsam. E é o seu inimigo imaginado que a liberta, que a acorda para o mundo dos vivos, oferecendo-lhe a confiança e segurança que lhe haviam sido roubadas desde o acto que a concebera.  

A imagem do filme La Teta Asustada de Claudia Llosa pode ser vista nesta janela.

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